quarta-feira, 14 de setembro de 2011


UMA PALAVRA SOBRE MOKSHA!
A DISPUTA
Há uma disputa acerca da diferença entre o objetivo de Vedānta, como explicitado pela tradição Advaita, e o objetivo do Yoga como explicitado por Patañjali em seu Yogasūtra.
Como todos os darśanas tradicionais, Vedānta e Yoga têm como objetivo a libertação do homem do sofrimento. Em Yoga a libertação chama-se kaivalya (liter. o ‘estado de ser um’) e em Vedānta chama-se mokṣa ou mukti (liter. ‘libertação’, no sentido de ‘soltura’).
Ainda que ambos objetivem a libertação, a natureza desta libertação e os meios para alcançá-la parecem diferir entre os dois sistemas de pensamento, haja dada, no mínimo, a diferença fundamental de que Vedānta é não-dual (propões que existe apenas uma realidade, brahman) e Yoga, dual (propõe duas realidades distintas, puruṣa e prakṛti).
O objetivo deste texto é analisar brevemente o conceito de kaivalya como proposto por Patañjali e, de posse de um entendimento acerca deste conceito de acordo com os sūtras, estabelecer as possíveis concordâncias ou discordâncias com o conceito de mokṣa como entendido em Advaita Vedānta.
Começaremos, pois, com uma brevíssima apresentação do conceito de mokṣa em Advaita Vedānta.
MOKSHA E VEDĀNTA
Como queremos ser breves a este respeito, pegaremos uma famosa frase de Śaṅkarācārya que resume todo o ensinamento: ‘brahmasatyam jaganmithyā jivobrahmaiva nāparaḥ – brahman é real e o universo é aparente; o indivíduo é brahman, sendo não-diferente dele.
O universo é aparente, não tem existência independente, e Eu, o ātmā, é a base real deste aparecimento. Assim como o universo de objetos de barro – pratos, travessas, potes, moringas, etc. – são aparentes, tendo sua realidade apenas em nomes e formas, enquanto que o barro é a realidade única (satya) de toda essa aparente variedade, sendo diferente de prato, travessa, moringa, etc., mas, ao mesmo tempo, sendo aquilo pelo qual todos esses objetos derivam sua existência; da mesma maneira a consciência auto-evidente manifesta na mente como a noção de ‘Eu’ é aquilo que é diferente do universo inteiro, mas que, ao mesmo tempo sustenta o universo inteiro, pois este não existe independente da consciência.
A libertação do sofrimento, mokṣa, de acordo com Vedānta, é a clara discriminação (viveka) deste ātmā que por natureza é livre de todos os nomes e formas que constituem o universo. Sendo livre do corpo e da mente, as limitações inerentes a estas esferas de experiência não limitam o ātmā.
Assim, o indivíduo fica livre (mukta) das noções causadoras de sofrimento, tais como, ‘Eu sou gordo’, ‘Eu sou magro’ (com relação ao corpo); ‘Eu sou saudável’, ‘Eu sou doente’ (com relação ao prāṇa); ‘Eu sou agitado’, ‘Eu sou tranquilo’ (com relação à mente - manas); ‘Eu fiz certo’, ‘Eu fiz errado’ (com relação ao intelecto - buddhi); ‘Eu estou feliz’, ‘Eu sou infeliz’ (com relação a noção de ser o usufruidor de experiência positivas e negativas). 
O que devemos notar com especial atenção é que a libertação não é trazida por qualquer modificação na natureza das coisas, tudo continuando a ser exatamente como sempre foi. O que muda é que a ignorância com relação ao fato de que eu sou e sempre fui livre das limitações da experiência é eliminada através de um conhecimento correto da minha própria natureza. 
Analisaremos agora o conceito de kaivalya como proposto nos Yogasūtra.
KAIVALYA E YOGA
Os famosos quatro primeiros sūtras apresentam uma visão geral do que o Yoga propõe. O segundo sūtra diz, ‘yogaḥ cittavṛtti nirodhah – yoga é a cessação (nirodha) das modificações da mente’. Com que propósito? ‘tadā draṣṭuh svarūpe avasthānam – então o ser consciente permanece na sua natureza’, diz o terceiro sūtra. E, quando não há yoga, o que acontece? O quarto sūtra responde, ‘vṛtti sārūpyam itaratrade outra forma há identificação com as modificações da mente’.
A filosofia proposta é, aparentemente, simples: todo o sofrimento está na mente, acabe com as modificações da mente e o sofrimento acabará.
Parece simplista demais, um tanto idealista e, por que não dizer, temerária, esse tipo de solução. Porque, primeiro, a mente é o instrumento que nos possibilita a vida. Segundo, a mente é apenas um fluxo de pensamentos (vṛtti pravāha). Quando dizemos ‘o movimento da mente’ isto é apenas uma força de expressão (upacāra), porque mente não existe sem movimento, isto é, mente é movimento. Portanto vṛtti nirodha, entendido como a supressão dos movimentos da mente, seria acabar com a mente e, portanto, acabar com a vida.
É uma solução sem dúvida sui generis (para não dizer idiota) para o problema do sofrimento. É como propor o suicídio. No entanto, várias pessoas pensam assim, e inclusive escrevem livros a respeito disso, falando sobre um estado que deveria ser buscado no qual não existe pensamento (nirvikalpa avasthā) e, portanto, sofrimento.
Se, entretanto, analisarmos com mais cuidado estes quatro primeiros sūtras, descobriremos uma maior profundidade no seu significado.
A meta a ser alcançada por citta vṛtti nirodha é draṣṭuh svarūpe avasthānam, a permanência do sujeito na sua svarūpa, natureza. Ora, como alguma coisa pode estar separada da sua natureza? Apenas por erro e confusão. O erro é o de o sujeito identificar-se com as modificações da mente, permanecendo como que na forma dos vṛttis (‘vṛtti sārūpyam’). O estado de nirodha, como o oposto do estado de identificação com os vṛttis, só pode ser o de não identificação do puruṣa (o ser consciente, o sujeito) com as modificações da mente.
Nirodha seria então mais uma cessação da identificação do puruṣa com as modificações da mente do que uma cessação da própria atividade mental, que não é possível nem desejável.
Portanto fica clara, desde estes primeiros sūtras, uma distinção entre puruṣa e mente (prakṛti ou ‘natureza’ no sentido de matriz de todas as coisas. A mente é uma modificação específica desta prakṛti).
A distinção, no entanto, é ignorada quando cognitivamente misturamos o puruṣa com os atributos pertencentes à mente e sofremos com isso. Na verdade, sofrimento só existe na medida em que o puruṣa está envolvido, misturado e identificado com o funcionamento mental. A mera cognição, por exemplo, de que ‘Os meus pensamentos estão se sucedendo em rápida alternância’ não é realmente suficiente para nos fazer sofrer. Mas a cognição ‘Eu estou agitado’, junto com as noções de que ‘Eu não deveria estar agitado’, etc., esta sim nos faz sofrer.
O conceito de kaivalya, que significa ‘o estado de ser um único’ (kevalasya bhāva), significa justamente o estado de ser do puruṣa isolado da prakṛti, isto é, sem se misturar (confundir) com ela. O isolamento pode se dar de uma das duas maneiras:
1) Desde um conhecimento de que a realidade do puruṣa é livre das limitações inerentes à prakṛti, assim como entendemos que o espaço único e infinito é inteiramente livre das limitações dos potes grandes e pequenos, apesar de dizermos ‘O espaço pequeno’ ao avistarmos o interior de um pote pequeno. Neste caso não haveria diferença fundamental entre Yoga e Vedānta, e entre mokṣa e kaivalya, que seria apenas o reconhecimento da natureza do puruṣa.
 2) Através de um processo de gradualmente livrar o puruṣa do contato que ele realmente estabeleceu com prakṛti. Neste caso haveria total diferença e oposição entre os dois sistemas e aquilo que eles objetivam.
Vejamos então, finalmente, qual a posição que Patañjali sustenta, por meio da análise de alguns dos seus sūtras menos famosos.
A POSIÇÃO DO YOGASŪTRA
O ponto principal a ser investigado é: o que os sūtras dizem sobre a natureza do puruṣa e de que maneira ele estabelece uma relação com prakṛti? E, a partir disso, qual a natureza de kaivalya e por que meios ela é alcançada?
O sūtra vinte do capítulo dois define em termos positivos a natureza do puruṣa: ‘draṣtā dṛśimātraḥ śuddhaḥ api pratyaya anupaśyaḥ, o sujeito (liter. ‘aquele que vê’) é tão somente consciência (‘dṛśi-mātraḥ’ liter. ‘mero poder de ver’ ou ‘mero ver’). Apesar de ser puro, parece ver pelas cognições da mente’.
O puruṣa é pura consciência. Dṛśi-mātra significa literalmente o ‘mero ver’. Dṛśi indica apenas a raiz verbal dṛś, que significa ver. Em sânscrito, este radical dá origem aos termos draṣṭṛ (o ‘vedor’, ‘aquele que vê’), dṛśya (o visto) e darśana ( a visão, que liga o ‘vedor’ com o visto). Dṛśi-mātra não é nem o ‘vedor’, nem o visto, nem a visão, mas aquilo que une e possibilita os três. É apenas a medida (mātra) de todo o ver, que é consciência.
Vyāsa, comentarista principal dos sūtras, dá o significado de ‘dṛk śaktiḥ eva – apenas o poder de ver’, ‘viśeṣaṇa aparāmṛṣṭā – intocado por qualquer atributo’.
Mas, apesar de puro, śuddhaḥ api, isto é, livre de qualquer associação com outra coisa que não ele (assim como o ouro é dito puro quando livre da associação com qualquer outro metal na sua composição), pratyaya anu-paśyaḥ, ele parece ver através das cognições da mente. Isto significa: o poder de ver – natureza do puruṣa – é atribuído à mente.
Essa confusão fica evidente, por exemplo, quando dizemos ‘Eu perdi a consciência’, no momento do sono profundo (nidrā). O que acontece nesta experiência é que a mente se desliga, mas o poder de ver continua presente, iluminando a ausência de mente na forma da experiência do sono. De outra forma a experiência nem seria possível, e não você não iria saber que dormiu.
Portanto, apesar de puro, intocado, existe, de algum modo, uma relação entre o puruṣa e a mente. Sem o puruṣa não haveria mente. Porque as cognições são momentâneas (kṣanika), ocorrem em sucessões instantâneas, mas a consciência não, e justamente por ser constante e invariável é possível que a consciência ilumine as modificações da mente. Caso a consciência fosse um atributo dos próprios pensamentos, a sucessão entre eles não poderia ser vista, porque a dissolução de um pensamento seria a dissolução da consciência e o surgimento de um novo pensamento seria o surgimento de uma nova consciência. Assim, não haveria uma base constante e invariável que evidenciasse a mudança dos pensamentos (e também a sua ausência), e, dessa forma, não poderia haver mente.
Fica estabelecido, portanto, que a luz (consciência) da mente não é pertencente à mente, mas é ‘emprestada’ do puruṣa, a consciência imutável.
O único problema é que, nesta relação, a consciência parece adquirir as qualidades do meio no qual ela está refletida. Quando a luz da consciência incide sobre a mente, ela se torna uma fonte de luz, da mesma maneira que quando o sol incide sobre uma poça d’água límpida a poça torna-se uma fonte de luz. Mas aquela luz não pertence à poça (que é apenas um meio de reflexão) e sim ao sol, assim como a consciência não pertence à mente, mas ao puruṣa. A mente é inerte, um produto da prakṛti constituído das três guṇas e objeto da consciência.
Não fazendo esta distinção (viveka) o puruṣa se torna totalmente identificado com a mente (junto, naturalmente, com o corpo com o qual a mente se identifica), apesar de ser totalmente distinto dela. A consciência parece ganhar os atributos (viśeṣaṇa) do corpo-mente, apesar de ser livre de quaisquer atributos (viśeṣaṇa aparāmṛṣṭā).
Essa é a confusão. É só por meio dela que dizemos, por exemplo, ‘Eu conheço a mesa’, quando a mente, na mera presença da luz que é o puruṣa, adquire a forma de mesa em uma cognição.
Pois o puruṣa realmente não tem sequer o atributo de ser um ‘conhecedor’ (que faz a ação de conhecer), porque ele é apenas dṛśimātra, pura consciência, assim como a luz, sendo apenas iluminação, ilumina todos os objetos que caem no seu escopo sem que possamos propriamente dizer que ela faça a ação (pravṛtti) de iluminar.
O sūtra vinte e três usa o termo ‘samyoga’ para designar esta relação entre puruṣa e a mente. Este termo significa ‘união’ ou ‘conjunção’. No sūtra seguinte, que nos interessa mais nesse momento, Patañjali afirma o que nós, a essa altura, já desconfiávamos: ‘tasya hetuḥ avidyā – a causa dessa união é ignorância ’.
Se a causa da samyoga entre puruṣa e prakṛti é ignorância, necessariamente se segue que não há uma conjunção, mistura ou união real entre os dois. Quando a causa de algo é apenas ignorância, segue-se que esse algo não é verdadeiramente existente. Se eu digo que a causa do movimento do sol em torno da terra é ignorância, isso significa que, realmente, não há movimento do sol em torno da terra. Há apenas ignorância a respeito da real natureza do objeto em questão.
Este sūtra interdita qualquer possibilidade de kaivalya ser, como tínhamos cogitado, ‘um processo de gradualmente livrar o puruṣa do contato que ele realmente estabeleceu com prakṛti’. Este tipo de abordagem simplesmente não é possível, porque ‘tasya hetuḥ avidyā’, a ‘causa da relação entre os dois é ignorância’ ou, negativamente falando, ‘não existe, de fato, nenhuma relação’. Tentar livrar gradualmente o puruṣa, através de ações, é como tentar matar a pauladas a cobra que você projeta erroneamente em uma corda.
O sūtra seguinte, vinte e cinco, diz: ‘tat abhāvāt samyoga abhāvaḥ hānam tat dṛśeḥ kaivalyam – Na ausência da ignorância a samyoga desaparece. Isto é a cessação. Isso é o isolamento (kaivalya) do sujeito’.
A causa para a cessação do sofrimento é a cessação de avidyā. Apenas isso e nada mais. A única pergunta restante é, ‘como acabar com avidyā’? Não precisamos ir muito longe, porque o sūtra seguinte (26) responde: ‘viveka-khyātiḥ aviplavā hānopayaḥ – o meio para a cessação é a discriminação clara, livre de confusão’.
A única maneira de eliminar ignorância é através do conhecimento. A ignorância aqui sendo a respeito da distinção entre puruṣa e a mente, o conhecimento deve ser a clara discriminação entre os dois.
O VEREDITO ACERCA DA DISPUTA
Nossa intenção era chegar a uma conclusão a respeito da relação entre os conceitos de libertação como apresentados em Advaita Vedānta e Yoga. Seriam eles diferentes, tanto no próprio entendimento do que seja a libertação do sofrimento como também nos meios para alcançá-la, ou seriam equivalentes?
A posição de Advaita Vedānta é muito claramente estabelecida, graças aos extensos e claros comentários de Śaṅkarācārya. A causa do sofrimento é avidyā, a ignorância acerca da real natureza do ātmā, Eu, por meio da qual este ātmā é tomado como possuindo os atributos perecíveis, inconstantes e limitados do complexo corpo-mente. A libertação, mokṣa, é a eliminação desta ignorância por meio do conhecimento claro de que o ātmā é pura consciência (jñāptiḥ) livre de limitação (ananta) e sempre existente (satyam).
O Yoga, como tentamos provar aqui, não diz nada diferente. A causa do sofrimento é a associação entre puruṣa e prakṛti, pela qual olhamos para nós mesmos através das várias limitações do corpo-mente. A causa desta associação é a ignorância, avidyā, a raiz de todas as aflições (kleśas), que na definição de Patañjali é ‘anitya-aśuci-duḥkha-anātmasu nitya-śuci sukha-ātma-khyātiḥ – a noção do Eu sempre existente, puro e livre de sofrimento, no não-eu, impermanente, impuro, e cheio de sofrimento’ (sutra 5, cap. II). O meio para eliminar a ignorância – eliminando assim com a associação entre puruṣa e prakṛti – é viveka- khyātiḥ, a clara discriminação acerca da natureza do Eu. O indivíduo é então reconhecido no seu isolamento, isto é, estabelecido em sua própria natureza sem nenhuma associação com qualquer causa de sofrimento.  
CONCLUSÃO
A libertação do sofrimento, por qualquer nome que lhe seja dada - mokṣa ou kaivalya - não pode, logicamente, ser o resultado produzido por uma ação. Porque qualquer coisa produzida não poderá ser eterna. Se a libertação fosse um novo status adquirido pelo ātmā, através de um longo e árduo esforço, nada o impediria dele novamente decair para o estado de sofrimento.
Portanto qualquer pensamento sério, que leve a lógica em consideração, não pode propor uma libertação ganha como resultado de uma ação, ou muitas ações somadas.
Vedānta não incorre neste erro e, queremos crer, Patañjali também não. A sua posição parece clara: O Eu já é livre das modificações da mente. Não é preciso modificar, purificar ou criar um novo Eu para que ele seja livre. Só é preciso eliminar a ignorância sobre a sua natureza. É Isso o que parece ter sido dito por Patañjali nos sūtras aqui tratados.
Texto de Luciano Giorgio.
Contato: lsgiorgio@hotmail.com
www.yogamoksha.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário