quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Ponto de vista do Luciano Giorgio sobre o texto Moksha

Olá, Vicente!
Indo direto ao ponto, e sem me ater aos detalhes de tudo o que você escreveu, basicamente discordo da sua visão sobre os Yoga Sutras quando você diz que o sistema de Patañjali é meramente ingênuo, e que para ele a ‘solução’ do problema humano é cortar as relações com o mundo, através do estado de absorção meditativa.
Citando o seu texto, Nos yogas sutras de Patanjali, fica claro que o único jeito que ele conhecia de permanecer em contato com sua Natureza Divina era por meio de uma retração cada vez maior dos sentidos, seguindo a gradual preparação dos oito passos, para uma vez atingido o nirvikalpa samadhi permancer nele o maior tempo possível, fora do mundo! Creio que a tentativa de associar “drashṭuh svarupe avashthanam” com a liberdade em meio ao mundo seja uma interpretação vedântica dos Sutras, uma tentativa de fazer O Raja Yoga parecer menos ingênuo! Entretanto, na minha opinião, era exatamente isso que o Raja Yoga era: INGÊNUO(...)’
O trecho acima concentra em si o cerne da minha divergência e, na argumentação que se segue me concentrarei apenas na refutação dele, deixando de lado minha visão acerca dos outros trechos do texto, ao menos por hora.
O primeiro ponto da discordância diz respeito ao objetivo dos oito angas. Segundo você, a mera retração da mente, o desaparecimento da relação com o mundo, para que o sujeito permaneça na sua ‘natureza’ que de outro modo seria corrompida pelo contato com o mundo.
Segundo Patañjali, no entanto, o objetivo dos angas é: a clareza do conhecimento, estendendo-se até a discriminação, viveka (entre purusha e prakrti). Isto está claramente dito no sutra 28,II.
De fato, um dos conceitos chave para o entendimento do sistema de Patañjali é viveka-khyati, o conhecimento discriminativo. A discriminação diz respeito à purusha e prakriti, ou ao ‘eu’ e o ‘não-eu’, que inclui tudo o que é visto pelo sujeito, incluindo a mente.
Toda a lógica que embasa o sistema de yoga pode ser resumida em 5 pontos: 1) o sofrimento deve ser evitado (16, II); 2) A causa do sofrimento é a mistura entre aquele que vê (o ‘eu’) e aquilo que é visto (17, II); 3) A causa dessa mistura é a ignorância (24, II); 4) No desaparecimento da ignorância, a mistura entre os dois desaparece, isso é eliminação do sofrimento e a liberação do purusha (25, II); 5) o meio para esta eliminação do sofrimento é o firme conhecimento discriminativo (viveka-khyatih aviplava) (26, II).
Interessante que Patanjali não diz que o meio para a eliminação da ignorância e, portanto, do sofrimento, é meramente o conhecimento discriminativo (viveka-khyati), mas a permanência firme, livre de oscilações neste conhecimento (vikeka-khyati aviplava). A-vi-plava significa alguma coisa livre de oscilação.
E, de fato, este parece ser mesmo o problema para nós. O conhecimento sobre o ser livre de limitação, mesmo que o tenhamos, parece ‘funcionar’ somente quando tudo está bem, mas quando algo nos contraria parece que este conhecimento não é de nenhuma ajuda. Reagimos da mesma maneira de sempre, como se não possuíssemos nenhuma discriminação.
Yoga, sendo o darshana que trata da mente, fala justamente de um meio pelo qual podemos fazer este conhecimento criar raízes na mente, de modo que, na nossa interação com o mundo, ele não seja perdido.
O que o seu raciocínio desconsidera, me parece, é o que há de mais rico no sistema de yoga descrito por Patañjali, que deixa claro o seu profundo conhecimento acerca do funcionamento da mente. O samadhi, um estado de profundo entendimento acerca de uma realidade, no qual o sujeito assimila profundamente esta realidade, não é um meio de escape da vida no mundo, mas justamente o meio pelo qual a mente vai, aos poucos, criando uma nova marca (samskara) de, digamos, visão de mundo, a partir da qual ela pode, se devidamente fortalecida pela prática (ver sutra I,14), passar a responder ao mundo a partir deste novo referencial (ver sutra I,50).
Na prática, nossa mente funciona assim: baseada em marcas criadas e fortalecidas, deliberadamente ou não.
A função da prática do samadhi (sim, samadhi é a princípio um dos angas a serem praticados, como asana ou pranayama) é capacitar a pessoa (a sua mente) a responder ao mundo no dia-a-dia baseada num referencial mais lúcido acerca de si mesma; em última instância, o referencial de que eu sou em realidade pleno, livre de qualquer falta, desejo ou limitação. Dessa forma sou livre, porque posso deixar o mundo inteiro ser exatamente como ele é, porque, basicamente, não preciso dele para me sentir bem.
Não haveria de fato nenhum grande valor no sistema de yoga (provavelmente nem seria reconhecido um darshana da ‘filosofia’ hindu) se o seu propósito fosse o isolamento do mundo, ou o seu desaparecimento da nossa percepção. Isso se consegue por outros meios muito mais simples e eficientes como o suicídio, drogas, e afins. Tampouco, neste caso, o yogi seria chamado de ‘sábio’. E se este fosse o propósito, também, por que Patanjali perderia tempo falando em viveka, discriminação?
Discriminar significa discernir duas coisas que aparentemente são uma só. Se você vê uma bola de ferro incandescente, pode pensar que o ferro tem a natureza de ser quente, ou que o fogo é redondo. Mas, como você já viu o ferro frio, e sabe que apenas o fogo tem a natureza de ser quente, você discrimina que o calor e a vermelhidão da bola pertencem ao fogo, e a forma esférica e a solidez pertencem ao ferro. Tudo isto vendo uma coisa só: uma bola vermelha e quente.
A discriminação, viveka, tem esta natureza, de separar duas coisas no seu entendimento, mas sem deixar de experimentá-las juntas. Do contrário, se as coisas estivessem de fato separadas na experiência, não necessitaríamos de discriminação nenhuma, mas também não experimentaríamos o mundo (bhoga) nem teríamos a alegria da liberação (apavarga).
Se o objetivo de yoga fosse isolar em uma suposta experiência o puro purusha (o que afinal não é possível, pois o purusha nunca é objeto de nenhuma experiência, mas o ‘experienciador’ de tudo) isso não seria fruto de discriminação, nem precisaria de nenhuma viveka. Por que então Patañjali falaria que o meio para a eliminação de duhkha é viveka khyAti?
Bem, espero que tenha conseguido esclarecer o meu ponto. Qualquer dúvida ou desacordo, estamos aí.
Um abraço!
Luciano

Luciano Giorgio é professor de Yoga, sânscrito e vedanta na escola de Yoga Moksha.
3095-9075


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